Um dado curioso: 1,3% e 0,2% é, respetivamente, a percentagem estimada de homens e mulheres com perturbação da personalidade antissocial, de acordo com estudos europeus1, 2. Segundo a DSM-53, a perturbação de personalidade antissocial (designação para o vulgo psicopata/sociopata) caracteriza-se por um desrespeito e violação dos direitos dos outros e das normas sociais, bem como uso da manipulação e engano como frequente estratégia para obtenção de benefícios ou prazer pessoais, impulsividade e incapacidade de sentir empatia. Já nas prisões, cerca de 47% dos homens e 21% das mulheres preenchem os critérios para o diagnóstico desta condição4.
As investigações que procuram explicar as bases do comportamento agressivo ou violento, seja em pessoas com diagnósticos clínicos ou em pessoas saudáveis, não pretendem, à partida, que estas possam ser desresponsabilizadas por tais atos, podendo sim ter a vantagem de as encaminhar para melhores intervenções – dado o atual fracasso de muitas prisões em reabilitar reclusos, com cerca de metade destes a regressarem a uma vida de crime após um período entre 1 a 5 anos, de acordo com dados atuais sobre reincidência nos Estados Unidos, Inglaterra e País de Gales5.
Na verdade, a crença de que os autores de comportamentos agressivos ou violentos são, na sua maioria, mentes maliciosas e até capazes de sentir prazer pelo sofrimento das suas vítimas, não é compatível com o reduzido número de pessoas com diagnósticos de perturbação de personalidade antissocial na população geral ou mesmo nas prisões – as quais estão associadas frequentemente aos crimes mais violentos. É de reforçar que esta perturbação nem sempre resulta em criminalidade ou comportamento violento. Este é um dado importante, uma vez que que nos diz que o número de pessoas com a perturbação apontado pelas investigações estatísticas não corresponde ao real, já que são frequentemente diagnosticadas apenas aquelas que tiveram comportamentos extremos e que já deram entrada no sistema prisional em algum momento das suas vidas6. Apesar de uma percentagem significativa dos atos mais violentos serem cometidos por pessoas com diagnóstico de perturbação de personalidade antissocial, a maior parte dos crimes que envolvem agressão e violência são praticados por pessoas sem diagnóstico psiquiátrico.
O que leva pessoas aparentemente comuns e saudáveis a ter comportamentos agressivos ou violentos?
A investigação assume diversas lentes para explicar o fenómeno da violência e agressão, recorrendo, entre outros, à biologia para explicar o papel dos genes, bioquímicos e estruturas cerebrais na facilitação ou inibição do comportamento agressivo ou violento. No entanto, estes comportamentos são altamente complexos, pelo que deixou de fazer sentido atribuir fatores ou causas únicas.
Qual a diferença entre agressão e violência?
Antes de mais, a literatura tem diferenciado agressão (e.g., uma criança empurra outra para obter o seu brinquedo favorito) e violência (e.g., homicídio na forma tentada ou consumada). O comportamento violento é considerado uma forma extrema de agressão, que surge fora de contexto e perde a sua função de comunicação com o outro7. Os investigadores diferenciam ainda entre a violência como ato impulsivo vs planeado, em resposta a provocação (reativo) vs predatório (intencional e dirigido), entre outros. A ideia a reter é de que diferentes tipos de agressão e violência podem envolver os diferentes mecanismos e áreas do nosso cérebro.
Estará a violência nos genes?
Os estudos com gémeos demonstram que a hereditariedade é uma componente importante do comportamento agressivo8, sendo que em algumas destas investigações, os genes podem ter um peso entre 41% a 65% na probabilidade de uma pessoa demonstrar agressividade ou violência8 9 10. Uma família holandesa, berço de agressões, violação, espancamentos e outros crimes. Assim surge documentada, em 1993, a primeira evidência do papel dos genes na violência e agressão. Nesta família os homens apresentavam uma estranha perturbação de comportamento, dando sinais de deficiência intelectual e agressividade impulsiva. Após investigação, descobriu-se que uma mutação do gene MAOA era o principal responsável e esta condição rara ficou conhecida, após os estudos de Brunner e colegas (1993)11 por Síndrome de Brunner.
Vários estudos salientam a relação entre uma variante do gene MAOA, também conhecido nos media como “gene guerreiro”, e uma maior probabilidade de recorrer à agressão11 12 13 14 15. Estima-se que esta variante – MAOA-L – está presente em cerca de 40% da população6, o que a torna bastante comum. No entanto, a maioria destas pessoas nunca cometeu qualquer crime, o que parece um contrassenso. Os investigadores salientam que a presença desta variante é apenas responsável por uma predisposição para a violência em determinadas circunstâncias15. Ou seja, apesar de uma pessoa nascer com esta variante do gene, tal não significa que se envolva, no futuro, em atos criminosos. Na verdade, os investigadores reforçam que o MAOA-L é apenas um dos genes, dos muitos ainda por identificar, que aumentam o risco de comportamento violento ou antissocial. Uma vez que a presença do MAOA-L por si só não é suficiente, é importante perceber o que interage com a presença deste e torna o comportamento violento mais provável em pessoas portadoras do gene.
Será que todos os agressores foram previamente vítimas?
A investigação encontrou uma forte evidência de que o gene MAOA-L influencia a forma como as pessoas respondem a algumas situações adversas, como os maus tratos na infância. A presença de maus-tratos na infância em conjunto com a presença desta variante do gene aumenta o risco de comportamento antissocial16 17. A literatura descobriu ainda que existem fatores como o consumo de álcool que interagem com este gene e resultam numa maior probabilidade de comportamentos agressivos ao longo do desenvolvimento18. Ou seja, os estudos sugerem que, quando uma pessoa portadora do gene tem uma história marcada, por exemplo, por maus tratos na infância e/ou consumo de álcool, terá uma maior probabilidade de manifestar comportamentos agressivos ou violentos ao longo da vida.
Onde reside a agressão no cérebro?
O cérebro divide-se em áreas distintas que controlam diferentes funções e respostas do nosso organismo. É necessário ter em conta que, para a maior parte destas respostas, várias estruturas cerebrais funcionam de maneira integrada. A amígdala e o hipotálamo (o berço das nossas emoções), bem como o córtex pré-frontal, onde as emoções são percebidas e controladas19 20, são as principais áreas implicadas na agressão. Estas diferentes estruturas são responsáveis pela regulação das nossas emoções e comportamentos, bem como pela forma como o nosso pensamento age sobre eles. Quando estas áreas sofrem alterações – o que pode ocorrer, por exemplo, devido a lesões nestas estruturas ou desequilíbrios em substâncias essenciais ao seu funcionamento – pode ser difícil para a pessoa, em algumas ocasiões, controlar alguns comportamentos, como o agressivo ou impulsivo. Estudos com autores de crimes violentos e psicopatas demonstram que estes apresentam, frequentemente, alterações nestas áreas do cérebro20.
Que químicos têm um papel na agressão?
O nosso cérebro é um órgão curioso: está repleto de células que comunicam entre si através de sinais elétricos e químicos. Alguns destes químicos mensageiros, tal como a testosterona e o cortisol, têm um papel fundamental no comportamento agressivo. Encontrada em homens e mulheres (embora em maior quantidade nos homens) a testosterona é importante para o crescimento muscular e do tecido ósseo, entre muitas outras funções. Esta hormona é também conhecida como um fator de risco para a agressão e violência21, no entanto não está sozinha: a testosterona não causa agressão ou violência, mas age em conjunto com outros fatores, entre eles o cortisol. Pensa-se que cabe ao cortisol atenuar os efeitos da testosterona22. Como é que ambos funcionam em conjunto? Perante uma provocação, as pessoas tendem a responder de forma mais agressiva e dominante quando os níveis de testosterona estão elevados e os níveis de cortisol estão reduzidos. Ou seja, pela sua baixa concentração, o efeito atenuante do cortisol não parece impedir os efeitos da testosterona em áreas do nosso cérebro responsáveis pelo controlo de impulsos (e.g., córtex pré-frontal). No entanto, quando os níveis de cortisol são elevados, conseguimos controlar melhor os nossos comportamentos e emoções, dando respostas menos agressivas à provocação22.
A investigação tem ainda encontrado outras substâncias com um papel relevante. A serotonina, por exemplo, tem uma ação inibitória no cérebro, estando envolvida na regulação de emoções e comportamentos, incluindo a inibição da agressão23 24. Baixos níveis de serotonina no nosso cérebro podem predispor as pessoas a comportamentos impulsivos, agressivos ou violentos25. O ómega-3 é um ácido gordo essencial para o saudável desenvolvimento do cérebro. Défices deste ácido gordo em períodos críticos de desenvolvimento do nosso cérebro (do feto ao nascimento e durante a primeira infância) podem favorecer uma predisposição para o comportamento agressivo ou violento ao longo da vida da pessoa. Peixes como o atum ou o salmão são fontes de ómega-3 e os estudos demonstram que há uma relação entre o consumo de peixe e a taxa de homicídios em vários países – quanto mais elevado o consumo de peixe na população, menor a taxa de homicídios26.
Mas afinal, tudo se explica a partir de cérebros que não funcionam como deviam?
Nem tudo. Na verdade, para lá do nosso cérebro e dos químicos que por lá circulam, existem as experiências que todos temos ao longo do nosso crescimento, que podem estar repletas de fatores protetores das vulnerabilidades que trazemos nos nossos genes e no funcionamento do nosso cérebro. Ninguém diria que atravessar uma colina para o outro lado a bordo de um jipe seria muito difícil. No entanto, se por algum motivo na fábrica onde foi construído, tivesse ocorrido um problema na colocação dos pneus, estamos sujeitos a, quando a estrada irregular colocar uma maior exigência nestes, furarem. Atravessar uma colina com um pneu furado pode tornar-se muito mais difícil. Assim também o é quando estamos perante as exigências da vida – o nosso cérebro pode ter-se desenvolvido de forma saudável e respondemos de forma adequada, outras vezes a irregularidade da estrada puxa os amortecedores e os pneus ao limite, e podemos dar connosco a agir ou reagir sem pensar, de forma impulsiva, agressiva ou violenta. Esperamos, no fim, que alguém nos consiga manter na estrada, rumo a caminhos mais saudáveis de crescimento.
Na casa Estrela do Mar acreditamos que é possível ajudar as pessoas e famílias a encontrar novamente caminhos de crescimento que lhes façam sentido e, no caso particular da agressão ou violência, intervimos para uma compreensão da pessoa mas também dos fatores do meio que contribuem para as dificuldades sentidas.
Por Ângelo Simões
Psicólogo na Associação Casa Estrela do Mar
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